RD - B Side
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"Sometimes meaningless gestures are all we have"

sábado, fevereiro 16, 2002
Pra começar um roteiro antigo, não revisado, agora disponível para a malhação geral.

(O PALCO) NA ESTRADA

SEQUÊNCIA 01 (exterior / estrada / dia)

Vemos as faixas da estrada e a seguir ouvimos os passos de alguém; os pés surgem em sapatos, botas.

SEQUÊNCIA 02 (interior / palco)

Outros sapatos no palco param. Um ator na ribalta. Ele olha para os pés e ele olha para frente. Ele está vestido com uma camisa branca com muitos floreios e rendas e suas calças são pretas. Ele anda um pouco para frente e subitamente tira uma adaga do bolso de trás ameaçando quem está a sua frente, no caso o público que não vemos.

SEQUÊNCIA 03 (exterior / estrada / dia)

Uma ponta de faca ameaça o queixo de uma mulher que está com uma mordaça na boca.
A mulher está com seus braços amarrados em suas costas na beira da estrada.
Um homem a ameaça, o mesmo que interpreta o ator no palco. Ele se veste diferentemente.

HOMEM:
– [grita] Não! Nada! Nada! [se acalma] Não há nada aqui... Você e eu...

SEQUÊNCIA 04 (interior / palco)

O rosto do ator.

ATOR:
– Aqui.

Ele se ergue. Encara o público que está quieto e apreensivo.

ATOR:
– Tirem suas máscaras, por favor! Rasgue–as. Destrua–as. Como eu faço aqui, agora!

O ator faz um corte em seu rosto com a adaga. Som de alguns na platéia se chocando.

ATOR:
– Eu vejo suas faces, de cada um de vocês e nada me agrada mais do que sentir, perceber que vocês não
passam de vermes. Eu os domino durante esse momento. Não é perturbador?

O ator parece encarar alguém da platéia.

ATOR:
– Não, você não me domina, eu não existo somente para você. Você não me cria e por isso não pode me dominar. Eu sim, os crio. [pausa] Minhas crias... Tão frágeis, tão carentes... [pausa] Não mais! Não mais as suas inquietudes, não mais suas aspirações, seus traumas, seus desejos. Não vou ser mais a sua muleta, sua muleta para pensar, para refletir, para se divertir, sua muleta para se identificar. Não sou seu espelho, não sou espelho de ninguém! Chega de suas súplicas, chega de seus aplausos. Falsos! Idiotas! A quem enganam? A si próprios? Eu quero sua atenção, eu quero sua obediência, eu quero é o seu dinheiro!

O ator aponta para pessoas da platéia que não vemos.

ATOR:
– Sim, senhora. Sim, senhor. É, meu rapaz. É, minha jovem. O dinheiro. E sua adoração. Ah, sim como eu quero. [ri]

Som de pequeno choro.

ATOR:
– Não. Por favor, eu não... quero dizer, eu...

O ator de súbito se agita, roda pelo palco a esmo e sai pela cortina ao fundo.

SEQUÊNCIA 05 (exterior / estrada / dia)

Uma lágrima cai do rosto da mulher e é aparada pelo dedo do homem. Ele acaricia o rosto dela.

HOMEM:
– O que você acha que eu posso fazer? Não tema, sua pele é tão... não vale a pena. Se eu disser que te desejo você vira as costas, não é? Se te odeio nada adianta. E mesmo assim, suja, amarrada, dominada, você é que comanda tudo, não é? Nada que eu faça muda isso. Há muito tempo eu acho que a gente devia fazer isso. Tirar as máscaras. Colocar cada coisa no seu lugar, como num palco, com as luzes se acendendo e os aplausos vindo... As cordas estão machucando?

Mulher acena que sim.

HOMEM:
– Oh, minha querida, eu... eu te soltarei daqui a pouco. Não se preocupe.

Uma rajada de vento faz com que ele veja o local onde está: uma estrada deserta, árida.

SEQUÊNCIA 06 (interior / camarim)

O ator está no camarim iluminado apenas com as luzes em volta do enorme espelho. Está sentado e se maquia.

ATOR:
– Não é esse rosto que faz tudo? Não é essa pele castigada pela maquiagem, dia após dia, espetáculo após espetáculo, esperando sempre aceitação, que faz tudo? [pausa] E essa voz que se faz ouvir ao longe de onde sai o lhe foi dito, o que foi escrito sem saber o que se passa aqui dentro [bate no peito], mas ó dádiva, depois de pronunciadas são partes essenciais de nossa vida como se já habitassem essa morada muito tempo atrás.

Ele lacrimeja um pouco e passa um pano no rosto.

ATOR:
– Se não sou eu o caminho, se não sou eu o instrumento, quem poderia ser? Quem entre os que vivem e os que morreram? Esse corpo eu trabalho, essa visão eu empresto, meu choro, meu riso. Os pés que saltam e caminham horas e horas. Minhas vestes. E esse rosto... Eu te adoro.

Ele toca sua face pelo espelho e desliza por ela.

ATOR:
– Eu faço por ti. Eu preciso de ti. Nada mais resta. Nada mais é necessário. Não é o carinho da mãe, o calor da amante, o abraço do amigo... É você. Como nunca deixou de ser... você.

Ele se aproxima do espelho e se beija.

SEQUÊNCIA 07 (exterior / estrda / dia)

O homem beija a face da mulher.

SEQUÊNCIA 08 (interior / camarim)

O beijo no espelho é longo e prolongado, vindo a provocar lágrimas e choro. Ele se recompõe. Arruma a maquiagem. Guarda com cuidado todos os apetrechos. Pega numa bolsa um maço de cigarros e tira um. Acende e lentamente aspira e solta a fumaça no espelho. Ele pára e olha o cigarro se queimar, ele estende a mão e apaga o cigarro em sua palma. Ele segura a dor e ajeita a roupa.

TELA PRETA

SEQUÊNCIA 09 (interior / palco)

Uma luz se acende e o ator está no palco já maquiado. Ele se curva em agradecimento à platéia que não emite som algum.

ATOR:
– Já podemos continuar com o espetáculo.

Ele respira fundo.

ATOR:
– Serão os deuses pérfidos a ameaçarem minha própria sorte? O destino que já fora traçado vem a sofrer interferências de vós ó imortais. Danem–se as divindades. Eu invoco seus poderes aqui em minha morada!

A luz se apaga de repente e o público se espanta.
Um som de pancada. Corte rápido para a...

SEQUÊNCIA 10 (exterior / estrada / dia)

A mulher chuta por entre as pernas do homem, que grita, cai ao chão e se contorce.
Ela se levanta com dificuldade e uma luz incide sobre seus olhos. Corte rápido para a...

SEQUÊNCIA 11 (interior / palco)

Uma vela acesa. Logo o rosto do ator aparece por detrás da vela. Ela é posta na beirada do palco, iluminando uma área pequena na qual o ator fica de pé.

ATOR:
– Um pequeno incidente. Nada de grave. Nada de alarmante. Apenas a luz. Sim, a luz.

Um som de carro surgindo e freiando. O ator se espanta e olha para o lado e atrás. Corte rápido para a...

SEQUÊNCIA 12 (exterior / estrada / dia)

Um pneu freia no asfalto. Um carro pára e dele surge outro homem, um jovem. A mulher corre em sua direção.
Ela emite sons, já que a boca continua amordaçada. O jovem desce do carro e vem acudi–la.

JOVEM:
– O que houve? Calma, calma.

HOMEM:
– [off] Não faça nada seu vermezinho!

SEQUÊNCIA 13 (interior / palco)

As luzes são acesas e outro ator (o mesmo jovem da estrada) entra em cena.

JOVEM:
– Mais uma vez venho a te encontrar, caro colega.

O ator se afasta dele.

ATOR:
– Como ousa? Suas entradas são inoportunas como a vez que você foi aparecer em hora inapropriada para minhas necessidades.

JOVEM:
– Suas necessidades? Aquela jovem não diria isso. Ela sofreu, não? Naquele calor.

ATOR:
– Não. [pausa] Não fazia, calor.

JOVEM:
– Fazia. E aquela jovem lá amarrada, deixada ao desespero. Os pulsos em carne viva e a língua seca querendo água. Sim, fazia calor. Como hoje faz frio, como amanhã estaremos dizendo as mesmas falas, sim fazia calor!

ATOR:
– Sim, agora me lembro...

SEQUÊNCIA 14 (exterior / estrada / dia)

O homem empunha sua faca e desafia o jovem. Ele tira seu canivete. Os dois se estudam.

SEQUÊNCIA 15 (interior / palco)

Os dois atores se desafiam, os dois com adagas.

SEQUÊNCIA 16 (interior – exterior / palco – estrada)

Com montagem paralela o ator enfrenta o jovem da estrada e o homem luta com o jovem ator, como se estivessem num mesmo espaço físico.
O golpe mortal é desferido.
Na estrada o homem é atingido. No palco é o jovem ator a sofrer o golpe. Aplausos.

SEQUÊNCIA 17 (exterior / estrada / dia)

O homem está no chão. Agoniza. Em sua face está um corte idêntico ao feito pelo ator no palco.

HOMEM:
– Maldito. Não sabe o que fez.

O jovem se aproxima.

HOMEM:
– Eu não quero ser lembrado por isso. Só [geme de dor] quero ser lembrado como o grande ator que fui. [respira com dificuldade] Você não sabe disso, não é vermezinho? [tosse sangue] Fui um grande ator, grande. [morre]

Jovem o encara e enxuga a face com a camisa. Vai até a mulher e a solta. Antes de qualquer coisa a mulher sai correndo. O jovem expressa querer falar algo mas desiste.

SEQUÊNCIA 18 (interior / palco)

O jovem está morto no palco, só que agora uma máscara está em seu rosto. O ator se volta para o público e encontra tudo vazio. Ele desce para a platéia e vê uma caveira numa cadeira vazia. Ele pega a caveira e a encara.

ATOR:
– Foi você o bobo da corte? Ou você é aquele que a pouco me apladiu, que fez minha existência mais valiosa. Que agora eu entendo que era minha razão, meu sentido. Parece que a cada noite as pessoas se despedem e fico eu. Toda noite me despeço de quem não conheço e mesmo assim vivo por isso. E pareciam amigas, pareciam minhas irmãs, meus amores, minha mãe... meu pai.

Ele passa pelas cadeiras vazias com a caveira em sua mão.

ATOR:
– A cada dia eu me perco ao final. E a cada abrir de cortinas eu passo a procurar durante todo o tempo a minha identidade. A minha vítima. O meu mestre.

Ele sobe novamente ao palco.

ATOR:
– Se tudo isso é uma representação ou se minha imaginação fugiu ao controle apenas os outros saberão. Eu não sei nada. Eu me entrego.

O ator ergue os braços e se curva como se agradecendo.

ATOR:
– Eu faço de vocês meus senhores. Eu faço de mim escravo. E, porém, sigo...

Ele se vira e caminha, saindo pela cortina. As luzes se apagam.

SEQUÊNCIA 19 (exterior / estrada / dia)

O jovem entra no carro e parte. Logo a diante ele vê a mulher parada na beira da estrada, braços juntos ao corpo, estática. Ele passa e olha pelo vidro do carro e depois pelo retrovisor. Segue.
A mulher está com o olhar perdido ao longe. Momentos se passam. Vento no cabelo. Ela fecha os olhos.

FIM
Autor: Renato Satoshi Doho.


posted by RENATO DOHO 12:13 AM
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