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"Sometimes meaningless gestures are all we have"

segunda-feira, outubro 23, 2006
Dália Negra (The Black Dahlia)



Impressionante como De Palma consegue, a partir de material alheio (o livro de James Ellroy), retrabalhar, de acordo com sua visão, todo um mundo. E isso se evidência nas impressões gerais de quem conhecia a obra: a adaptação é infiel. Caso semelhante ocorreu com A Fogueira Das Vaidades onde a infidelidade lhe custou muito mais caro. Mas em ambos os casos o que fica é outra grande obra numa carreira extremamente atacada, mas nunca ignorada.

Se líamos aqui e ali comparações de Femme Fatale com Mulholland Drive de David Lynch em Dália Negra além de ter todo um parentesco com essa obra não dá pra não deixar de ver um primo em A Estrada Perdida.

O que são Bucky e Lee se não faces (complexas) da mesma pessoa (moeda)? Se de início isso é quase óbvio pelos apelidos Fogo e Gelo que recebem, os sobrenomes parecidos e o triângulo amoroso com Kay, as coisas vão entrando numa espiral de interligações que trazem à mente a tira de Moebius que Lynch trabalhou em Estrada Perdida. A tira, quem não sabe, é apenas o que seria um círculo comum só que uma das pontas é virada e colada na outra ponta, impossibilitando assim uma noção do lado exato que estamos vendo (dentro ou fora). Quando vamos respondendo algumas questões do filme de quem realmente estamos falando?

- quem se interessa pelo caso Dália e começa a ficar obsessivo com isso?
- quem se aproxima de uma suspeita que muitos dizem lembrar a falecida?
- quem tem o sorriso mais fácil como o homem que ri?
- quem esconde o sorriso pelos dentes perdidos?
- quem salva a vida de quem?
- quem engana quem?
- quem realmente morre? e quem o mata?
- quem “resolve” o caso?

Claro, racionalmente temos algumas respostas claras, mas totalmente incoerentes, como é incoerente o fato de Madeleine não se parecer com Elizabeth como todos dizem durante o filme. E isso é uma das coisas que mostram claramente o gênio de De Palma em subverter o próprio filme e transformá-lo em algo além de uma adaptação.

É apenas quando Lee morre que Bucky se posiciona, mas sendo Madeleine que mata Lee e é morta por Bucky e sendo ela “semelhante” à morta quem realmente, em essência, sobreviveu e morreu ao final? E sem acrescentarmos George Tilden (a escolha de William Finley é excelente no que ele representa no filme e na obra de De Palma) que joga muito mais coisas e pessoas nessa intricada teia. Uma teia muito similar ao que ocorre em Missão Impossível (procura de identidade, agentes fantasmas, investigação, máscaras, falsos chefes, falsas percepções) ou Dublê De Corpo ou Vestida Para Matar ou...

As cenas de ensaio/teste onde o próprio De Palma entra no filme (através da voz do diretor) reforçam as idéias de representação (acrescentando aí o filme pornô caseiro achado) tanto da imagem como da idéia de cinema de Hollywood e o jogo entre diretor e público.

Somente com revisões é possível apreciar todos os lados da questão, uma de cada vez para depois juntar tudo de novo, como na primeira vez. O filme já trabalha com isso ao embaralhar o que realmente trata com o que se acha que ele trata (a morte de Elizabeth). Ele não trata mais da dualidade de Bucky e Lee? Ou Bucky entre Madeleine e Kay? Ou Madeleine com Elizabeth, sua família e Bucky e Lee? Ou a cidade de Los Angeles e o submundo (ou base) de suas fundações, concretas (as construções) e sociais (a elite, o cinema, a polícia)? Ou Elizabeth e Bucky em suas trajetórias onde acabam corrompidos e vitimizados por Hollywoodland? Ou George em meio à tudo isso?

Em cada lado muitas coisas podem ser reveladas que não foram de imediato. O mesmo que acontece com Bucky durante a investigação, onde ele vai ligando coisas aparentemente soltas e rearranjando, percebendo que muitas vezes sua primeira percepção foi errônea (quadro final de Femme Fatale?).

Alguns personagens e cenas exemplificam isso. A ligação da descoberta do corpo de Elizabeth com o tiroteio a seguir não é mero exibicionismo técnico, mas sim um encaixe entre coisas que aparentemente não têm ligação (e isso é mais do filme que do livro). Mesma coisa com a introdução da família de Madeleine toda feita em pela visão subjetiva de Bucky. Madeleine e Bucky e Lee conseguem superar um previsível triângulo ao se relacionarem de forma metafórica. Madeleine com seu desejo de se relacionar com quem lhe era parecida (Elizabeth) se revela mais um desejo de morte, pois ela se realiza ao matar Lee e também George (que matou Elizabeth), sendo que Lee ali é Bucky (para não complicar mais não vamos pensar que Bucky nessa cena não consegue evitar que ele mesmo morra, ou melhor dizendo, um lado dele não morra). Tanto que ela parece ter certeza que o Bucky ao final não tem mais o lado Lee capaz de matá-la (o que vemos, é um erro). Gostei das associações que fizeram com o BD marcado nas costas de Kay. Seria Bobby DeWitt, Dwight Bleichert, Black Dahlia, Body Double, ou Brian DePalma?

Óbvio que a cada tentativa de se ficar desenrolando as linhas narrativas ou tentando seguir uma linha vamos acabar enrolados como na tira de Moebius. Onde é o começo, o fim, o meio? Que foi o erro que Estrada Perdida também sofreu dos espectadores ao tentar ligar os dois personagens masculinos com os dois femininos que na verdade são as mesmas pessoas. O igual não é igual, mas também não é diferente.

A cena final é brilhante nessa confusão de personalidades: Bucky em meio à duas visões, sendo que uma delas não é exatamente a dele (Lee sim teria mais traumas com o corpo de Elizabeth, um dos motivos de sua obsessão com o crime e a vítima). E lembrando que Kay em acesso de fúria disse antes que Bucky acabaria se tornando Lee mais nos faz pensar quem está ali diante da porta. Bucky e Lee. Morena e Loira. Escuridão e Luz. Gelo e Fogo. Céu e Inferno. Brian De Palma.


posted by RENATO DOHO 5:28 PM
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